4.11.11

Um abrigo, uma homenagem, um curativo


Este depoimento foi escrito por minha mãe, eu achei tão emocionante que resolvi compartilhar: 
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Meu nome é Edymar. Sou arquiteta formada pela UFMG desde 1969. Tenho 65 anos. Até final de 2003 trabalhei na FIEMG, no setor de Engenharia onde fiz projetos para centros educacionais profissionalizantes SENAI e para Clubes do SESI e finalmente os centros integrados SESI/SENAI. A procura pela tríade simples/ funcional /essencial sempre esteve presente neste trabalho, haja vista que estas unidades integradas foram construídas não só no Brasil como também na África para preparar mão de obra inexistente em países destruídos pelas guerras, cuja população tem muitos mutilados pelas minas terrestres.

Desde 2005 moro em Nova Lima, no Jardins de Petrópolis em uma área de 3,8 ha, sendo 1,00 ha de mata ciliar. Minha casa aqui no meio do mato foi construída dentro deste mesmo espírito, privilegiando um processo executivo rápido, simples, dentro de um orçamento enxuto, ou seja, concepção de um projeto pode partir de uma idéia escultural, estrutural, funcional, de acordo com a empreitada em questão sendo o ponto de partida a mensagem do cliente. Entretanto, a ergonomia e a simplicidade estarão sempre presentes e se refletirão do piso ao teto, do interior para o exterior.

Bom, agora aqui em Nova Lima, tenho trabalhado como voluntária tanto na Associação do Bairro quanto na Fundação de atenção ao especial de NL-FAENOL onde continuo fazendo a arquitetura como sempre quis, só que agora, fora da rotina competitiva e estressante do emprego, ou seja, EM ESTADO DE GRAÇA.
Mas há também uma curiosidade experimental que ainda não tinha vivenciado, e este estado de graça com certeza fez aflorar o bicho carpinteiro. Pensei em fazer um projeto com os elementos fornecidos pela terra (adobe, solo cimento, palha,pedras,material reciclado...) em um platô natural no meu terreno. 

Então, num dia de julho, no final da tarde, baixa um ciclone aqui no mato: árvores caindo, as telhas balançando, esquadrias chacoalhando, energia só do ciclone porque a elétrica se foi com os postes tombados e fios arrebentados. Foram minutos terríveis. Em toda a minha vida nunca tinha passado por tamanho susto. Após um tempo, que pareceu eterno, fui para fora para ver os estragos: impossível tirar o carro da garagem, sair pela estrada, chegar até o vizinho mais próximo. Um mar de árvores cobria o chão e muitas delas arrancadas pela raiz pelo vento de mais de 180km/h.

Passei por dias de luto observando a devastação, as clareiras, as fraturas das árvores, as raízes expostas...
Solicitei uma visita dos técnicos do IEF para fazer o manejo desta área devastada.O engenheiro florestal Roberto Guimarães Silveira me forneceu uma licença para corte, destoca, poda e liberdade de uso do material lenhoso resultante. Aí o bicho carpinteiro desperta e me assopra: está aí o material para o experimento: madeira de todos os tipos. E no platô existente, imaginei um abrigo rústico utilizando apenas as árvores tombadas. Um abrigo, um santuário, uma homenagem, diria.
Tudo o que aconteceu depois foi tão natural que pareceu milagre: encontrei a mão de obra certa, embora tivesse que esperar uns meses, fiz alguns investimentos para esta nova estrutura: levar água e energia até o local. O acesso ao platô apareceu assim que foi feita a limpeza. Uma estrada mágica para uma aventura mágica. Princípio de setembro,o patamar, abaixo1,20m da trilha de acesso, recebeu um muro de pedra ( própria da região) em arco de 5m de raio, com uma fundação direta de 50cm de profundidade, intercalado com mourões de eucalipto imunizado como moldura dos quadros. Uma lona plástica foi colocada entre o barranco e as pedras. Esta primeira parede se chama LAR nas construções antigas. LAR.... Lá estava ela.
Um processo de seleção criterioso do material lenhoso nos conduziu a uma feição quase primitiva de desdobramento, corte e emparelhamento das estruturas e paredes. Uma motosserra fez este trabalho. Os mourões e esteios enterrados receberam um tratamento com fogo e embalagem em plástico na porção enterrada. O entusiasmo tomou conta de todos nós ao ver o abrigo virando realidade. Cada peça cortada gerava um processo criativo. A parte das raízes foi separada para virar pé de mesa. Um tronco virou cadeira de espaldar alto, outro lembrou suporte para lavatório, mais outro, mais outro...
Uma fundação em pedras de mão e blocos de concreto recebeu as primeiras camadas da madeira desdobrada. Para o lado de fora, as toras foram deixadas com casca e para o lado de dentro, as superfícies ficaram aparelhadas para receber tratamento posterior. Ao término da obra, as madeiras receberão imunização contra cupins. Alguns encaixes foram feitos nos montantes (eucalipto tratado) e com pregos 22x48, foi feita a junção das peças horizontais com verticais. A cada etapa da obra, realizamos uma reunião para avaliação do já executado e programação dos passos seguintes visando o máximo aproveitamento do material lenhoso.
Chegamos à cumeeira utilizando integralmente as árvores disponíveis, com exceção dos mourões de eucalipto imunizados (esteios). Para o piso do mezanino, utilizaremos madeira aparelhada, réguas de ipê, já processadas industrialmente porque a rusticidade impõe seus limites. O mesmo decidimos para a cobertura que terá sobre as peças mestras rústicas, caibros aparelhados para receber as telhas de embalagens Tetra-pack recicladas. As juntas das paredes receberão selante elástico de Poliuretano. Noé em sua arca usou betume.
O restante dos vãos do abrigo será vedado com vidro. Exceto pela cobertura, haverá um mimetismo da construção com o local. Talvez um chapéu prateado seja a lembrança de um enorme curativo sobre uma ferida que numa quinta feira, 09 de julho, um ciclone abriu na mata.

Edymar von Randow Arquiteta Nova Lima, 30 de outubro de 2011

3 comentários:

Unknown disse...

"Passei por dias de luto observando a devastação, as clareiras, as fraturas das árvores, as raízes expostas..." igualmente pragmatico e poetico. adorei ler esse depoimento; muito inspirador.

abraco a vc e a sua mae:)

Lu x

Paula disse...

Tal mãe, tal filha. Lindo! Beijo Paulinha

Milton Lira - visagens e escadilisses disse...

muito inspirador mesmo!
Olá, tive a felicidade de conhecer seu irmão Fábio, compartilhei com ele boas tardes durante os dois meses de realização do Curso de Serigrafia na FAENOL e tive rápidas conversas com sua mãe. Os dois são ótimos. E que bela oportunidade de conhecer um pouco mais sua mãe neste depoimento.
Abraços.